A saúde bucal é um componente essencial da saúde geral e da qualidade de vida, mas, historicamente, não recebeu a mesma atenção das demais áreas da saúde pública. A negligência com a saúde da boca não se limita ao âmbito pessoal — ela se reflete nas políticas públicas, nos sistemas de saúde e nos indicadores epidemiológicos do país.
Problemas bucais, como cárie, doença periodontal, perda dentária, câncer de boca e infecções, impactam diretamente na alimentação, na fala, na autoestima e na inserção social dos indivíduos. Em situações mais graves, podem gerar infecções sistêmicas, hospitalizações e até risco de morte, especialmente em pacientes com doenças crônicas.
Por isso, discutir saúde bucal no Brasil, no âmbito das políticas públicas, não é apenas falar de dentes. É falar de saúde, cidadania, direitos humanos, inclusão e desenvolvimento social.
Evolução das políticas públicas em saúde bucal no Brasil
O Brasil tem uma trajetória marcada por desigualdades sociais e desafios na estruturação dos serviços de saúde. Por muitos anos, a odontologia esteve restrita aos atendimentos de caráter emergencial ou ações pontuais, sem integração efetiva com a saúde pública.
Essa realidade começou a mudar, sobretudo a partir da Constituição de 1988, quando o Sistema Único de Saúde (SUS) foi criado. A partir desse marco, a odontologia foi inserida no contexto da atenção primária, permitindo um avanço importante no acesso da população aos serviços odontológicos.
O grande divisor de águas na história da saúde bucal no Brasil aconteceu em 2004, com a criação da Política Nacional de Saúde Bucal, conhecida como “Brasil Sorridente”. Essa política estruturou a oferta de serviços odontológicos dentro do SUS, fortalecendo as ações de promoção, prevenção, tratamento e reabilitação.
Com a implantação das Equipes de Saúde Bucal na Estratégia Saúde da Família, os serviços passaram a ser ofertados de forma territorializada, integrada e focada nas necessidades da comunidade. Além disso, houve expansão dos Centros de Especialidades Odontológicas (CEO) e dos Laboratórios Regionais de Prótese Dentária (LRPD), ampliando o acesso a serviços especializados e reabilitadores.
Desafios atuais da saúde bucal no Brasil
Apesar dos avanços, a saúde bucal no Brasil enfrenta inúmeros desafios. O subfinanciamento do SUS impacta diretamente a manutenção das equipes de saúde bucal, a reposição de insumos, equipamentos e a expansão de serviços especializados.
As desigualdades regionais também persistem. Municípios mais pobres, especialmente nas regiões Norte e Nordeste, apresentam menor cobertura de serviços odontológicos, maiores índices de cárie em crianças, perda dentária precoce e ausência de acesso a tratamentos especializados.
Além disso, o modelo biomédico ainda predomina em muitas práticas, priorizando o tratamento de lesões, sem ênfase suficiente na promoção da saúde, na educação em saúde bucal e na abordagem social dos determinantes de saúde.
Outro desafio relevante é a invisibilidade da saúde bucal no debate público. Políticas de saúde bucal frequentemente não recebem a mesma visibilidade ou prioridade que outras áreas, como atenção hospitalar, saúde mental ou vacinação.
Saúde bucal como direito social
A saúde é um direito social garantido pela Constituição Federal de 1988, e isso inclui a saúde bucal. Portanto, cabe ao Estado assegurar ações que garantam não apenas o atendimento odontológico curativo, mas também políticas de promoção, prevenção e educação permanente.
O acesso universal, igualitário e gratuito aos serviços de saúde bucal é uma questão de justiça social. Quando um cidadão não consegue se alimentar adequadamente, sorrir, falar ou se inserir no mercado de trabalho por limitações bucais, há uma violação dos seus direitos fundamentais.
Neste sentido, fortalecer políticas públicas de saúde bucal no Brasil, não é uma opção, mas uma obrigação do Estado, uma demanda da sociedade e um imperativo ético.
O impacto social da saúde bucal
A ausência de cuidado com a saúde bucal impacta diretamente no desenvolvimento humano e na economia. Crianças com cárie têm maior índice de evasão escolar. Adultos com dor ou problemas bucais crônicos apresentam queda de produtividade, maior absenteísmo e dificuldades de inserção no mercado de trabalho.
Na população idosa, a perda dentária compromete a nutrição, agrava quadros de diabetes, hipertensão e pode levar à perda da autonomia. Estudos também mostram associação entre doença periodontal e complicações cardiovasculares, além de agravar desfechos em pacientes com insuficiência renal, câncer ou em unidades de terapia intensiva.
Portanto, a saúde bucal precisa ser compreendida como determinante da saúde geral e, por consequência, como fator estratégico para o desenvolvimento econômico e social de um país.
O papel dos profissionais na construção de políticas públicas
Os cirurgiões-dentistas são agentes fundamentais na construção, implementação e aprimoramento das políticas públicas de saúde bucal. Sua atuação vai além do atendimento clínico; envolve participação ativa nos conselhos municipais e estaduais de saúde, na formulação de propostas e na defesa do financiamento adequado para a área.
É dever ético do profissional lutar por condições dignas de trabalho, por acesso da população aos serviços de qualidade e pela valorização da odontologia como parte indissociável da saúde. Profissionais bem preparados e comprometidos transformam realidades, tanto na clínica quanto na esfera social e política.
Perspectivas e caminhos futuros
O fortalecimento da saúde bucal no Brasil passa necessariamente pela ampliação do financiamento, pela valorização dos profissionais do SUS e pela retomada das políticas estruturantes, como o Brasil Sorridente.
Também é essencial integrar cada vez mais a odontologia aos programas de saúde coletiva, como saúde da mulher, do idoso, da criança, dos trabalhadores e da população em situação de rua. A interdisciplinaridade é um caminho sem volta.
O avanço da telessaúde, da educação permanente e das tecnologias digitais pode ser um grande aliado na qualificação dos profissionais e na ampliação do acesso, especialmente em regiões remotas.
Além disso, é urgente incluir a saúde bucal no debate sobre os determinantes sociais da saúde, na construção de cidades saudáveis e na luta contra as desigualdades sociais, raciais e econômicas que ainda marcam o Brasil.
Conclusão: saúde bucal é saúde pública
A saúde bucal não é um tema isolado, técnico ou restrito aos consultórios. Ela é parte fundamental da saúde pública, dos direitos humanos e da construção de uma sociedade justa.
Garantir o acesso a serviços odontológicos de qualidade, com enfoque na promoção, prevenção e reabilitação, é uma das formas mais poderosas de reduzir desigualdades, melhorar indicadores de saúde e promover desenvolvimento social.
A luta pela saúde bucal deve ser, portanto, uma luta coletiva — dos profissionais, dos gestores, dos usuários do SUS e de toda a sociedade.