A atenção primária é a porta de entrada preferencial do Sistema Único de Saúde (SUS) e tem como premissa a promoção, prevenção, cuidado longitudinal e integral da saúde. No contexto da saúde bucal, esse modelo não apenas reorganiza a prática odontológica, mas também reposiciona o cirurgião-dentista como agente fundamental da saúde pública, ampliando seu escopo de atuação para além dos procedimentos restauradores e curativos.
A inserção da odontologia na atenção primária ocorreu de maneira estruturada com a criação da Política Nacional de Saúde Bucal, o programa Brasil Sorridente, lançado em 2004. Essa política consolidou as Equipes de Saúde Bucal na Estratégia Saúde da Família (ESF), permitindo que o cuidado odontológico fosse descentralizado, territorializado e vinculado às reais necessidades da população.
Segundo o Ministério da Saúde, a atenção primária deve ser resolutiva para até 85% dos problemas de saúde da população, incluindo as demandas relacionadas à saúde bucal. A saúde bucal deve estar integrada ao cuidado contínuo, sendo responsável tanto por ações clínicas quanto educativas no território.
Desafios e Potencialidades da Atenção Primária em Odontologia
Apesar dos avanços nas últimas décadas, a odontologia na atenção primária ainda enfrenta desafios estruturais e operacionais. Dados da Pesquisa Nacional de Saúde Bucal (SB Brasil) mostram que, embora tenha havido queda nos índices de cárie em crianças e ampliação do acesso, as desigualdades persistem, especialmente nas populações rurais, ribeirinhas, quilombolas e em áreas urbanas periféricas.
O modelo biomédico, centrado no procedimento, ainda é um obstáculo em muitas realidades. A dificuldade de romper com a lógica do atendimento exclusivamente restaurador impede que as ações de promoção e prevenção sejam efetivamente priorizadas.
Além disso, a rotatividade de profissionais, o subfinanciamento do SUS e a precarização dos vínculos de trabalho comprometem a consolidação de uma atenção primária forte, resolutiva e centrada no cuidado integral.
Entretanto, é inegável o impacto positivo das ações bem-sucedidas. Municípios que fortalecem a ESF, com equipes bem estruturadas e integração interprofissional, apresentam melhores indicadores de saúde bucal e menor prevalência de agravos orais.
A Prática Clínica na Atenção Primária em Saúde Bucal
O cirurgião-dentista que atua na atenção primária precisa ir além do atendimento clínico convencional. Seu papel inclui:
- Planejamento territorial das ações, considerando os determinantes sociais de saúde;
- Realização de visitas domiciliares para pacientes acamados ou com dificuldade de locomoção;
- Participação em atividades educativas nas escolas, creches e grupos comunitários;
- Integração com agentes comunitários de saúde, enfermeiros, médicos e demais profissionais da equipe multiprofissional;
- Monitoramento de indicadores, como cárie na infância, perda dentária no adulto e necessidades protéticas nos idosos.
Essa atuação ampliada permite não apenas tratar doenças, mas também transformar realidades sociais, contribuindo para a redução das desigualdades em saúde.
Formação e Capacitação para Atuar na Atenção Primária
O modelo de atenção primária exige do cirurgião-dentista competências específicas, que nem sempre são priorizadas na formação tradicional. São necessárias habilidades de comunicação, planejamento em saúde, análise de território, trabalho em equipe interdisciplinar e, sobretudo, compromisso social.
O próprio Ministério da Saúde disponibiliza materiais e diretrizes voltadas para esse aprimoramento. Destaca-se o Caderno de Atenção Básica nº 17 – Saúde Bucal, um dos documentos mais importantes para orientar a prática dos profissionais da odontologia no SUS.
A Atenção Primária Como Pilar da Odontologia Social
Atuar na atenção primária é assumir o compromisso com uma odontologia que enxerga o paciente em sua totalidade, inserido em um contexto social, econômico e cultural. É também reconhecer que a clínica individual não é suficiente para enfrentar os desafios das desigualdades em saúde.
A consolidação da odontologia na atenção primária exige investimento, formação crítica e engajamento dos profissionais. Mais do que nunca, o papel do cirurgião-dentista no SUS não se limita a restaurar dentes, mas sim a construir saúde, cidadania e equidade.